terça-feira, 22 de outubro de 2024

A Alma do Papa São João Paulo II


Para entender João Paulo II verdadeiramente, é preciso começar reconhecendo que, antes de qualquer coisa, ele foi um discípulo cristão profundamente convertido. Logo após sua morte, em 2 de abril de 2005, Henry Kissinger declarou à NBC que seria difícil imaginar alguém com maior impacto no século XX do que o papa polonês que, na noite de sua eleição, em 1978, se descreveu como "um homem vindo de uma terra distante". Isso é notável porque Kissinger, uma figura influente da política mundial, não compartilhava das crenças religiosas ou filosóficas de Karol Wojtyła. Passados mais de 15 anos, o comentário de Kissinger ainda merece reflexão. Se João Paulo II foi, de fato, a figura mais emblemática do século XX, o que fez dele essa personalidade marcante? E como sua virtude heroica, reconhecida pela Igreja quando ele foi canonizado em 2014, se relaciona com seu impacto?

Em uma conversa em 1996, João Paulo II comentou sobre as tentativas dos biógrafos de entender sua vida: "Eles tentam me entender de fora. Mas eu só posso ser compreendido de dentro." Ele sabia que era uma figura histórica, mas insistia que sua história só poderia ser compreendida a partir de sua alma. Revisitando essa alma, podemos compreender melhor sua vida e suas realizações.

Karol Wojtyła, que se tornaria João Paulo II, tinha uma alma profundamente polonesa, moldada não só pela cultura do país, mas pela experiência histórica da Polônia. Nascido em 1920, ele foi da primeira geração de poloneses a crescer num Estado independente após mais de um século de ocupação estrangeira. Durante 123 anos em que a Polônia não existia como nação, sua cultura e fé católica preservaram a identidade nacional. Isso deixou uma marca profunda em Wojtyła, que acreditava que a cultura, mais do que a política ou a economia, era o verdadeiro motor da história. E no coração de qualquer cultura está o culto, ou seja, aquilo que as pessoas veneram. Quando foi eleito papa, em 1978, a Igreja Católica no Ocidente parecia estar em declínio. Mas João Paulo II, com sua experiência polonesa, acreditava que o cristianismo ainda poderia ser uma força poderosa para moldar o futuro.

A espiritualidade de João Paulo II também foi profundamente influenciada pela tradição carmelita, especialmente pelos escritos de São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, que ensinaram que a verdadeira realização humana está no dom de si, em obediência a Deus. Para João Paulo II, a Cruz de Cristo era o ponto central da história humana. A partir disso, ele desenvolveu sua ética, acreditando que, assim como recebemos nossas vidas como um presente, devemos oferecer nossas vidas aos outros.

Outro aspecto fundamental da sua espiritualidade era sua devoção à Virgem Maria. Desde cedo, ele se colocou sob a proteção de Maria, vendo nela não apenas uma figura tradicional da fé polonesa, mas o exemplo supremo de discipulado cristão. Sua obediência à vontade de Deus, especialmente nas horas mais difíceis, inspirou a vida e o pontificado de João Paulo II.


Além disso, Wojtyła possuía uma alma dramática, formada por sua paixão pelo teatro. Ele via a vida como um drama, uma jornada entre o que somos e o que devemos nos tornar. Essa visão dramática, aliada à sua experiência como ator e dramaturgo, o ajudou a se conectar de forma autêntica com as pessoas, especialmente com os jovens, desafiando-os a buscar grandeza moral e espiritual, mesmo em um mundo marcado pelo pecado e pelo mal.

Embora João Paulo II tivesse uma profunda vocação sacerdotal, ele também possuía o que poderíamos chamar de uma "alma laica". Antes de considerar o sacerdócio, ele pretendia viver como leigo e acreditava que a santidade não era uma vocação reservada ao clero, mas um chamado universal para todos os cristãos. Para ele, a fé católica deveria iluminar todos os aspectos da vida, não apenas uma parte dela.

Por fim, sua vida foi marcada pela busca de uma ideia coerente da dignidade humana, especialmente depois de experimentar as atrocidades da Segunda Guerra Mundial e da ocupação comunista em sua terra natal. Ele acreditava que a Igreja tinha a missão de resgatar a ideia de pessoa humana em um século marcado pela desumanização. A seu ver, o século XX havia deixado cicatrizes profundas, e o papel da Igreja era apontar um caminho de esperança e redenção para a humanidade.

A experiência de Karol Wojtyła durante a Segunda Guerra Mundial foi decisiva para moldá-lo. A brutalidade e o sofrimento constantes na Polônia sob o regime nazista fizeram com que ele se tornasse um “diamante”, alguém capaz de enfrentar as dificuldades e, ao mesmo tempo, refletir a luz em tempos sombrios. Essa força interior o ajudou, mais tarde, a desafiar o regime comunista e a inspirar movimentos de resistência pacífica.

Quando João Paulo II foi eleito papa, a divisão entre o Oriente e o Ocidente, simbolizada pelo Muro de Berlim, parecia permanente. Muitos líderes mundiais acreditavam que o melhor que se poderia fazer era amenizar as tensões. Mas João Paulo II, com sua visão firme, recusou-se a aceitar essa divisão como inevitável e, com seu papel decisivo no colapso do comunismo, mostrou ao mundo que uma mudança histórica era possível.

Dentro da Igreja, João Paulo II ajudou a restaurar o senso de missão evangelizadora. Ele acreditava que a Igreja não podia se limitar à manutenção de suas instituições, mas deveria se transformar em um empreendimento missionário, como era nos seus primórdios. Para ele, o catolicismo não era apenas uma tradição a ser preservada, mas um chamado a todos para uma nova evangelização, para levar a mensagem de Cristo a todas as nações.

João Paulo II foi um papa que trouxe ao seu pontificado um conjunto excepcional de talentos e dons pessoais, que foram refinados por sua fé inabalável e décadas de experiência pastoral. Sob sua liderança, a Igreja se tornou um ator importante no cenário mundial e na renovação espiritual do final do século XX e início do XXI. Mas para entender João Paulo II de verdade, é preciso começar pelo reconhecimento de sua alma profundamente enraizada na fé cristã e na visão de que o mundo só pode ser transformado através da luz de Cristo.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Não Há Liberdade Sem Verdade - São João Paulo II estava certo!



“Não pode haver Estado de direito… a menos que os cidadãos e especialmente os líderes estejam convencidos de que não há liberdade sem verdade.” 

Papa São João Paulo II

O homem é chamado à liberdade e à verdade. A verdade é dada ao homem como uma fundação inabalável. “Só então ele será capaz de se realizar completamente e até mesmo superar a si mesmo.” Não há liberdade sem verdade. Ambos são fenômenos integrados, fundidos em um.

O esplendor da verdade resplandece em todas as obras do Criador e, de modo especial, no homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1, 26). Segundo Karol Wojtyła, “A verdade ilumina a inteligência do homem e molda sua liberdade, levando-o a conhecer e amar o Senhor”. 

Somente a liberdade que advém da verdade gera o bem. Caso contrário, a liberdade pode ser uma força para o mal, pois degenera em licença. Estas são  respostas a duas perguntas fundamentais: O que é liberdade? A liberdade pode existir sem a verdade?

De acordo com Aristóteles, “a liberdade é uma propriedade da vontade que é realizada através da verdade. A liberdade é dada ao homem como uma tarefa a ser cumprida.” A autor realização da liberdade humana na verdade começa na “experiência do sujeito moral.” São Tomás de Aquino abraçou o sistema aristotélico de virtudes: prudência, justiça, fortaleza e temperança. “O bem que deve ser realizado pela liberdade humana é precisamente o bem das virtudes.” Mas São Tomás deu um passo adiante e adicionou à moralidade de Aristóteles “luz que é oferecida pela Sagrada Escritura. A maior luz vem do mandamento de amar a Deus e ao próximo. Neste mandamento, a liberdade humana encontra sua realização completa.

O enraizamento da liberdade na verdade também tem sido um tema central nos escritos de São João Paulo II, enquanto Papa. No coração de seus documentos magisteriais está o tema da liberdade humana. O Papa a definiu desta forma:

“A liberdade não consiste em fazer o que gostamos, mas em ter o direito de fazer o que devemos.” 

O homem é chamado à liberdade”, nos disse. Ele quis dizer liberdade baseada em valores e atitudes éticas. A liberdade também se apoia em quatro fundamentos principais: verdade, solidariedade, sacrifício e amor.

Verdade : “As forças criativas livres do homem só se desenvolverão ao máximo se forem baseadas na verdade, que é dada a todo homem como uma fundação inabalável. Só então ele será capaz de se realizar completamente e até mesmo superar a si mesmo. Não há liberdade sem verdade.”

Solidário : “A liberdade experimentada na solidariedade se expressa na ação pela justiça nos campos político e social, e direciona o olhar para a liberdade dos outros. Não há liberdade sem solidariedade.”

Sacrifício: “A liberdade é um valor extremamente precioso, pelo qual um alto preço deve ser pago. Ela requer generosidade e prontidão para o sacrifício; requer vigilância e coragem diante de forças internas e externas que a ameaçam. … Não há liberdade sem sacrifício.”

Amor. “Deixe o portão aberto abrindo seus corações! Não há liberdade sem amor.”

Karol Wojtyla sabia o preço real da liberdade. Ele viveu sob a ameaça de morte pelos nazistas e viu sua amada Polônia lutar sob os comunistas. Portanto, ele foi um dos mais poderosos embaixadores da liberdade e da verdade em seu próprio país e no mundo inteiro. Em 1996, o papa polonês apelou para “aquelas nações que ainda têm negado o direito à autodeterminação, aquelas muitas nações, e há de fato muitas delas nas quais as liberdades fundamentais do indivíduo, fé e consciência, assim como a liberdade política, não são garantidas”. Assim, a falta de verdade se traduziu em falta de liberdade. 

Em sua primeira encíclica Redemptor Hominis, São João Paulo II citou as palavras de Cristo sobre a força libertadora da verdade. Então ele acrescentou:

Estas palavras contêm tanto uma exigência fundamental como uma advertência: a exigência de uma relação honesta com a verdade como condição para a liberdade autêntica, e a advertência para evitar todo o tipo de liberdade ilusória, toda a liberdade superficial unilateral, toda a liberdade que não consiga entrar na verdade total sobre o homem e o mundo.” 

De fato, dado o pluralismo contemporâneo, o agnosticismo e o relativismo cético, o aviso de São João Paulo II sobre a “crise da liberdade e da verdade” soa como uma profecia. Ele nos alertou que qualquer afastamento da verdade resulta na liberdade perdendo suas amarras e expondo o homem à violência da paixão e à manipulação. 

A crise contemporânea da liberdade é, em sua raiz, uma crise da verdade. Na Veritatis Splendor, na Evangelium Vitae e em outros lugares de seus ensinamentos oficiais, São João Paulo II afirmou que, negar o elo entre liberdade e verdade poderia levar ao totalitarismo. E em Memória e Identidade ele explicou:

O abuso da liberdade provoca uma reação que toma a forma de um sistema totalitário ou outro. Esta é a corrupção da liberdade que experimentamos no século XX e estamos experimentando algumas dessas formas hoje.

Seguindo Aristóteles, São Tomás de Aquino e São João Paulo II, repetimos que “não há liberdade sem verdade”. É claro que a ligação entre a liberdade humana e a verdade é de suma importância. Portanto, entender os pensamentos dos nossos filósofos e a teologia da verdade e da liberdade de São João Paulo II dentro dos contextos individuais, sociais e políticos nos ajuda a responder adequadamente aos desafios dos tempos atuais.