quinta-feira, 12 de junho de 2025

Exegese sobre Mateus 5, 20-26

Jesus Teaches the Sermon on the Mount, the Beatitudes | ClipArt ETC 

A Justiça Superior e a Reconciliação Fraterna  

Introdução

O trecho de Mateus 5, 20-26, inserido no contexto do Sermão da Montanha (Mt 5–7), é uma seção crucial do ensino de Jesus e oferece uma nova interpretação da Lei Mosaica, aprofundando seu significado e exigindo uma justiça superior à dos escribas e fariseus. Como parte das chamadas “antíteses” (Mt 5, 21-48), onde Jesus contrapõe sua interpretação da Lei mosaica à prática tradicional, este texto aborda o mandamento contra o homicídio (Êx 20, 13) e o aprofunda, enfatizando a interioridade da moralidade e a necessidade de reconciliação fraterna. Este estudo exegético, realizado com rigor teológico e sensibilidade dogmática, analisa o texto sob as perspectivas histórica, literária, teológica e pastoral, com atenção à tradição católica.

1. Contexto Histórico e Literário

1.1. Contexto Histórico

O Evangelho de Mateus, composto provavelmente entre 80-90 d.C., foi escrito para uma comunidade predominantemente judaico-cristã, familiarizada com as Escrituras hebraicas e as tradições rabínicas. A tensão entre os cristãos e as autoridades judaicas, especialmente fariseus, é evidente, pois o judaísmo estava se reorganizando após a destruição do Templo (70 d.C.). Mateus apresenta Jesus como o novo Moisés, que cumpre e aperfeiçoa a Lei e os Profetas (Mt 5, 17).

1.2. Contexto Literário

Mateus 5,20-26 está situado no Sermão da Montanha, o primeiro dos cinco grandes discursos do Evangelho, que ecoa a entrega da Lei no Sinai. O versículo 20 funciona como uma tese geral para as antíteses que seguem (5, 21-48), estabelecendo o princípio da “justiça superior”. As antíteses têm uma estrutura repetitiva: “Ouvistes o que foi dito aos antigos Eu, porém, vos digo” (5, 21-22), indicando a autoridade de Jesus para reinterpretar a Lei.

O trecho pode ser dividido em:

U  5,20: Introdução programática sobre a justiça superior.

U  5,21-22: Releitura do mandamento contra o homicídio, estendendo-o à ira e à injúria.

U  5,23-24: A exigência de reconciliação antes do culto.

U  5,25-26: A urgência de resolver conflitos para evitar o julgamento.

2. Análise Exegética Versículo por Versículo

2.1. Mateus 5,20 – A Justiça Superior

Jesus declara que a justiça dos seus seguidores deve exceder a dos escribas e fariseus para entrar no Reino dos Céus. Isso não significa apenas cumprir a lei externamente, mas também internalizar seus princípios e praticar a justiça com sinceridade e amor.

“Porque vos digo que, se a vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus.”

Terminologia: A palavra “justiça” (gr. Dikaiosynē - δικαιοσύνη) aqui é mais que obediência externa: é santidade interior, fidelidade total à vontade de Deus. É uma conformidade com a vontade de Deus (cf. Mt 3,15; 6,33). Para os escribas e fariseus símbolos da justiça legalista, baseada em rituais e exterioridades, onde esta era frequentemente reduzida a uma observância externa da Lei. Jesus exige uma justiça interior, que vai além do legalismo.

U  Teologia: Este versículo estabelece o padrão ético do Reino dos Céus, que não anula a Lei, mas a interioriza e a radicaliza. A entrada no Reino depende de uma obediência que nasce do coração, em contraste com o formalismo farisaico (cf. Mt 23,23-28).

U  Tradição Católica: A justiça superior ressoa com a doutrina da graça, que transforma o coração humano (cf. Catecismo da Igreja Católica [CIC], 1965-1974). São João Crisóstomo comenta que a justiça do cristão deve “superar não só em quantidade, mas em qualidade” a dos fariseus — deve nascer da caridade e não do medo da punição. Já Santo Agostinho, em De Sermone Domini in Monte, interpreta essa justiça como a caridade perfeita, que cumpre a Lei (Rm 13,10).

2.2. Mateus 5,21-22 – Do Homicídio à Ira

Jesus expande a proibição do assassinato para incluir a raiva, o insulto e o desprezo pelos outros. Jesus ensina que a ira e o ódio no coração são tão condenáveis quanto o ato físico de matar.

“Ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás; e quem matar será réu de juízo’. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se irar contra seu irmão será réu de juízo; e quem lhe disser ‘Raca’ será réu do Sinédrio; e quem lhe disser ‘Tolo’ ficará sujeito ao fogo do inferno.”


Estrutura: Jesus cita o quinto mandamento (Êx 20,13; Dt 5,17) e reconhece a autoridade da Lei, mas prepara o terreno para aprofundá-lo ou ampliá-lo, deslocando o foco do ato externo (homicídio) para a disposição interna (ira). A progressão das ofensas (“ira”, “Raca”, “Tolo”) e suas consequências (“juízo”, “Sinédrio”, “fogo do inferno”) reflete uma intensificação retórica.

Doutrina moral: O mandamento é interpretado não apenas como proibição do homicídio físico, mas como condenação da ira desordenada, ódio, desejo de vingança — todos germes do homicídio (cf. Catecismo §2302-2303).

U  Terminologia:

o   “Ira” (gr. orgizomenos): Refere-se a uma raiva descontrolada, distinta do justo zelo (cf. Ef 4,26). A ira, como raiz do homicídio, é igualmente pecaminosa.

o   “Raca”: Termo aramaico de desprezo, significando “vazio” ou “estúpido”, uma injúria que desumaniza o outro.

o   “Tolo” (gr. mōros): Mais grave, implica uma rejeição total da dignidade do outro, negando sua relação com Deus.

o   “Fogo do inferno” (gr. geenna tou pyros): Alusão ao vale de Hinom, associado ao julgamento divino. A geenna indica a exclusão definitiva da comunhão com Deus.


Teologia: Jesus revela que o pecado começa no coração (cf. Mt 15,19). A dignidade do próximo, criado à imagem de Deus (Gn 1,27), é violada não apenas pelo homicídio, mas por qualquer atitude que negue sua humanidade. Isso antecipa a ética do amor ao próximo (Mt 22,39).

Tradição Católica: O Concílio de Trento (Sessão VI, cân. 23) ensina que os pecados mortais, como a ira desordenada, podem excluir do Reino se não houver arrependimento. Santo Agostinho comenta: Jesus mostra que o homicídio começa no coração. Quem se permite odiar ou insultar o irmão, mesmo sem derramar sangue, já transgrediu a Lei de Deus interiormente. Enquanto Tomás de Aquino (Summa Theologiae II-II, q. 158) distingue a ira pecaminosa, que busca vingança, da ira virtuosa, que corrige o mal.

2.3. Mateus 5,23-24 – Reconciliação antes do Culto

Jesus ensina sobre a importância da reconciliação antes de oferecer um sacrifício no altar. Se alguém se lembrar de que um irmão tem algo contra ele, deve primeiro reconciliar-se com ele e depois oferecer sua dádiva. Isso enfatiza que a reconciliação com o próximo é essencial para a verdadeira adoração a Deus.

“Se, pois, ao levares tua oferta ao altar, ali te lembrares de que teu irmão tem algo contra ti, deixa ali tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; depois, volta e apresenta tua oferta.”


  • Contexto Judaico: A “oferta ao altar” refere-se ao culto sacrificial no Templo. Jesus subverte a prioridade do culto externo, colocando a reconciliação fraterna como condição para a verdadeira adoração.
  • Teologia: Deus rejeita o culto vazio (cf. Is 1,11-17; Am 5,21-24). O culto agradável exige pureza de coração e relações reconciliadas (cf. Is 1,11-17; Mc 11,25). A fraternidade é intrínseca à comunhão com Deus, refletindo o mandamento do amor (Lv 19,18). O mandamento da reconciliação precede a adoração: o culto a Deus deve partir de um coração reconciliado com os irmãos.
  • Tradição Católica: Este texto fundamenta a prática do sinal da paz na liturgia eucarística, onde a reconciliação precede a comunhão (cf. Missal Romano). O CIC (n. 1435) destaca a reconciliação como essencial para a vida cristã.
  • Liturgia: Isso ecoa na Missa, especialmente no Rito da Paz e no Pai Nosso: “perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos...

2.4. Mateus 5,25-26 – Urgência da Reconciliação

Jesus aconselha a resolver disputas rapidamente para evitar consequências legais e punição. A mensagem é sobre a importância de buscar a paz e a reconciliação o mais rápido possível, antes que as situações se agravem.

“Reconcilie-se depressa com teu adversário, enquanto estás a caminho com ele, para que ele não te entregue ao juiz, e o juiz ao guarda, e sejas lançado na prisão. Em verdade te digo: dali não sairás enquanto não pagares até o último quadrante.”

Além do sentido moral, o texto tem sentido anagógico (referente à eternidade) e espiritual:

  • O culto interior é mais importante que ritos externos.
  • O “adversário” pode ser também a própria consciência, que nos acusa no tempo presente.
  • O “caminho” simboliza o tempo desta vida.
  • O “juiz” representa Deus no julgamento, e a “prisão” pode ser interpretada como o Purgatório ou até mesmo o Inferno, segundo o contexto moral da falta de perdão.
  • “Último centavo” (quadrans) = plenitude da expiação.
Imagética: A linguagem jurídica reflete disputas civis comuns na Palestina do século I, onde dívidas não resolvidas levavam à prisão. O “adversário” (antidikos) pode ser lido tanto literalmente quanto escatologicamente, como Deus ou o próximo ofendido.
 
Teologia: A urgência da reconciliação depressa” aponta para a finitude do tempo humano e a iminência do julgamento divino (cf. Mt 25,31-46). O “quadrante” (moeda de ínfimo valor) simboliza a justiça divina, que exige reparação total.
 
Tradição Católica: Este versículo foi historicamente associado ao purgatório na tradição católica (cf. CIC, 1030-1032), onde as dívidas espirituais são purificadas. Santo Agostinho (Enarrationes in Psalmos, 37) e São Gregório Magno (Dialogorum Libri, IV) o interpretam como um chamado à conversão imediata. Santo Tomás de Aquino: “Este texto indica que ninguém entrará na visão de Deus sem antes ter satisfeito por todos os seus pecados, mesmo os menores.”
 
4. Síntese Teológica
Mateus 5,20-26 apresenta a ética do Reino dos Céus como uma justiça que transcende o legalismo, exigindo a conversão do coração. Jesus amplia o mandamento contra o homicídio, condenando a ira e a injúria como violações da dignidade humana. A reconciliação fraterna é condição para o culto verdadeiro e uma resposta urgente diante do julgamento divino. Este texto reflete a cristologia de Mateus, que apresenta Jesus como o intérprete definitivo da Lei, e antecipa a eclesiologia de uma comunidade chamada a viver em fraternidade e santidade.
 
Nova Aliança e Justiça Superior: Jesus não veio para abolir a Lei, mas para cumpri-la (Mateus 5, 17). Ele revela o verdadeiro propósito da Lei, que é amar a Deus e ao próximo (Mateus 22, 37-40). A justiça superior que Jesus exige envolve uma transformação interior e uma prática de amor e misericórdia que vai além do cumprimento formal da Lei.
 
Reconciliação e Adoração: A reconciliação com o próximo é uma condição para a adoração aceitável a Deus. O Catecismo da Igreja Católica (CIC 2608) destaca a importância da conversão do coração, incluindo a reconciliação com o irmão antes de apresentar uma oferta no altar. A adoração a Deus não pode ser separada do amor e da justiça para com o próximo.
 
Ira e Pecado: Jesus eleva o padrão moral ao equiparar a ira e o insulto ao pecado do assassinato. Isso mostra que o pecado começa no coração e na mente, e que devemos controlar nossos pensamentos e emoções para evitar o pecado.
 
Misericórdia e Perdão: O chamado à reconciliação reflete a misericórdia e o perdão que Deus oferece a nós. Devemos estender esse mesmo perdão e misericórdia aos outros, amando até mesmo nossos inimigos (Mateus 5:44)
 
4.1. Implicações Dogmáticas
  • Antropologia Cristã: O ser humano, criado à imagem de Deus, é chamado à santidade, que começa com a transformação interior (cf. Gaudium et Spes, 22).
  • Soteriologia: A entrada no Reino depende da graça, que capacita o homem a viver a justiça superior (cf. CIC, 1996).
  • Eclesiologia: A comunidade cristã é um espaço de reconciliação, refletindo a comunhão trinitária (cf. Jo 17,21).
  • Escatologia: O julgamento divino é justo e exige reparação, mas a misericórdia está disponível para os que se reconciliam (cf. Mt 18,21-35).
 
4.2 Aplicação espiritual:
  • Perdoa e reconcilia-te antes que seja tarde.
  • Examina tua consciência antes de comungar: há alguém contra quem guardas rancor?
  • Cultiva a mansidão e a paciência, como Jesus nos ensinou (cf. Mt 11,29).
 
5. Aplicações Pastorais
  1. Formação Moral: Ensinar que a verdadeira moralidade cristã vai além da observância externa, exigindo o controle das paixões e o respeito pela dignidade do outro;
  2. Liturgia e Reconciliação: Reforçar a importância do sinal da paz e do sacramento da penitência como preparação para a Eucaristia;
  3. Exame de Consciência: Os cristãos são chamados a examinar suas consciências regularmente para identificar sentimentos de raiva, ressentimento ou ódio em seus corações;
  4. Busca da Reconciliação: Diante de conflitos ou desentendimentos, os cristãos devem tomar a iniciativa de buscar a reconciliação com seus irmãos e irmãs em Cristo;
  5. Prática do Amor e da Misericórdia: Os cristãos são chamados a amar seus inimigos, a orar por aqueles que os perseguem e a fazer o bem àqueles que os odeiam (Mateus 5:44);
  6. Adoração Genuína: A participação na Eucaristia e em outros atos de culto deve ser precedida por um esforço sincero de reconciliação com o próximo.
 
6. Conclusão
Mateus 5,20-26 é um chamado radical à conversão do coração, à reconciliação fraterna e à preparação para o julgamento divino. Jesus, como o novo Moisés, revela a profundidade da Lei, exigindo uma justiça que nasce do amor e da graça. Desafia os cristãos a viverem uma justiça superior, que vai além do cumprimento externo da Lei e se manifesta no amor, na misericórdia e na reconciliação com o próximo. Este trecho do Sermão da Montanha nos convida a transformar nossos corações e a buscar a paz em todos os nossos relacionamentos, para que nossa adoração a Deus seja verdadeira e aceitável.
 
Para a Igreja Católica, este texto é um convite perene à viver a santidade que reflete a comunhão com Deus e com os irmãos, antecipando a plenitude do Reino dos Céus.
Jesus não apenas cumpre a Lei, mas a eleva ao plano da caridade perfeita. O homicídio começa no coração, e a comunhão com Deus exige purificação interior.
 
“Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é mentiroso” (1Jo 4,20).
 
A perfeição cristã começa na misericórdia, no perdão e na humildade. Por isso, a justiça dos filhos do Reino deve exceder a dos escribas e fariseus: é uma justiça de coração transformado pela graça.