Parábola do
Bom Samaritano
1. Contexto do Texto
(São Lucas 10,25-37)
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Resumo do trecho: São Lucas 10, 25-37 relata a Parábola do Bom
Samaritano. Esta narrativa se passa na jornada de Jesus a Jerusalém e é uma
exclusividade do Evangelho de Lucas. A passagem começa com um mestre da Lei
(perito jurídico) testando Jesus, perguntando o que deve ser feito para herdar
a vida eterna. Jesus responde afirmando o duplo mandamento de amar a Deus e ao
próximo, levando o doutor da lei a perguntar: "Quem é o meu próximo?"
Jesus responde com a parábola, ilustrando o amor ao próximo por meio das ações
de um samaritano para com um judeu ferido, em contraste com um sacerdote e um
levita que passam sem ajudar.
Esta passagem é significativa, pois encapsula a essência do
ensinamento ético de Jesus, desloca o foco das definições legalistas para a
ação transformadora e reformula o conceito de vizinhança no contexto da
misericórdia e do amor universal de Deus. Jesus então, encerra com a exortação:
“Vai e faze o mesmo” (Lc 10,37).
Lugar na narrativa
lucana: Esta passagem situa-se dentro da seção do “Caminho para Jerusalém”
(Lc 9,51–19,27), uma parte central no Evangelho de Lucas, onde Jesus ensina
intensamente sobre o discipulado, o Reino de Deus, e os valores que devem
nortear a vida cristã. A parábola é um eixo chave de todo o evangelho lucano,
por seu teor profundamente cristológico, eclesial e escatológico.
2. Enquadramento
Teológico Geral
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- O episódio articula três grandes temas: vida eterna,
mandamento do amor e universalidade do próximo.
-
Ele revela a radicalidade da caridade cristã, que ultrapassa
fronteiras religiosas, culturais e étnicas.
-
No plano teológico, a cena revela um aspecto profundo da
revelação da misericórdia divina — tema central em Hans Urs von Balthasar e
Adrienne von Speyr.
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Von Balthasar vê nesta parábola uma cristologia implícita: o
samaritano figura o próprio Cristo, que se inclina sobre a humanidade ferida,
assumindo o lugar do servo misericordioso, desprezado, mas salvador. Enfatiza a
abertura radical do amor de Cristo, vendo o samaritano como uma figura de
Cristo que age com compaixão divina, transcendendo fronteiras étnicas e
obrigações religiosas. A teologia de Balthasar destaca a dimensão kenótica
(autoesvaziamento) do amor, onde a caridade autêntica é uma participação no
próprio Sim de Cristo ao Pai e à humanidade.
Adrienne von Speyr, frequentemente interpreta os encontros
evangélicos como convites para adentrar os mistérios do amor de Cristo, vendo a
compaixão do samaritano como um reflexo da vida interior da Trindade e o
chamado ao amor abnegado. E em sua mística teologia, associa o samaritano à
vocação da Igreja de ser “hospital de almas”, uma Igreja que deve ver com os
olhos da misericórdia.
Cardeal Ratzinger (Bento XVI) interpreta a parábola como uma
correção da leitura legalista da Lei, substituindo o mero cumprimento por uma
ética do amor ativo que brota da fé. No Jesus de Nazaré, ele afirma: “Jesus
reinterpreta a ideia de próximo não como um limite, mas como um horizonte
aberto pela compaixão”.), lê então a parábola tanto como uma exortação moral
quanto como uma alegoria cristológica. O samaritano representa Cristo, que vem
em auxílio da humanidade caída, transcendendo os limites da lei e do ritual.
Ratzinger enfatiza que a parábola não se refere apenas à ética, mas à
transformação trazida pela graça e pela nova vida em Cristo.
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3. Estrutura de Exegese
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A.
Análise Literária
O texto apresenta uma estrutura dialógica com uma parábola
inserida:
- v.25-28: Diálogo entre Jesus e o doutor da Lei — sobre a vida
eterna.
-
v.29-37: Parábola do Bom Samaritano — resposta narrativa à
questão "quem é o meu próximo?"
A parábola em si possui uma estrutura tripartida:
- Contexto e personagens (v.30-32) – os três primeiros
viajantes: sacerdote, levita, samaritano.
-
Ação de misericórdia (v.33-35) – descrição detalhada das
atitudes do samaritano.
-
Aplicação e exortação final (v.36-37) – pergunta de Jesus e
convite à imitação.
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Lucas utiliza um crescendo dramático: o sacerdote (máxima
autoridade cultural), o levita (subordinado no culto) e finalmente o samaritano
(herege, desprezado), invertendo as expectativas religiosas do ouvinte
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B.
Contexto Histórico e Cultural
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- Jerusalém para Jericó: uma estrada perigosa e montanhosa,
frequentemente alvo de assaltos.
-
Sacerdote e levita: figuras respeitadas que, segundo o
código levítico, poderiam temer a impureza ritual (cf. Lv 21).
-
Samaritano: grupo odiado pelos judeus (cf. Jo 4,9). Sua
aparição como herói moral é profundamente subversiva.
-
A Lei judaica continha preceitos sobre o amor ao próximo (Lv
19,18), mas frequentemente este “próximo” era interpretado de modo restritivo
(ex. apenas membros da comunidade de Israel).
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C. Inspirações
Patrísticas e dos Teólogos Clássicos
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A Tradição
Patrística (incluindo Santo Agostinho e Santo Ambrósio):
Frequentemente
interpreta a parábola alegoricamente: o homem ferido é Adão/humanidade,
Jerusalém é o paraíso, Jericó é o mundo caído, os ladrões são os demônios, o
sacerdote e o levita representam a Antiga Aliança, o samaritano é Cristo, a
hospedaria é a Igreja e o hospedeiro é o apóstolo Paulo ou os ministros da
Igreja.
Santo Agostinho
(Sermo 171,11):
“O homem que descia
é Adão. Jerusalém é a cidade da paz celestial, Jericó é o mundo decaído. Os
salteadores são os demônios, que o despem da graça. O sacerdote e o levita são
a Lei e os Profetas, que não podem salvar. O samaritano é Cristo, que o leva à estalagem,
a Igreja.” Santo Agostinho lê a parábola em chave alegórica cristológica e
eclesial, interpretação mantida por séculos.
São Tomás de Aquino
(S. Th. II-II, q.30):
Para São Tomás, a
misericórdia é a mais alta expressão da caridade ativa. Ele diria que o
samaritano realiza a caridade na forma perfeita: sentir a miséria do outro como
própria (misericordia = miserum cor). Na Catena Áurea, reúne insights
patrísticos, enfatizando a universalidade da caridade e a necessidade de
transformação interior para o cumprimento da lei.
Hugo de São Vítor
(Didascalicon):
Embora menos
frequentemente citado diretamente nesta passagem, é conhecido por sua abordagem
mística e pedagógica, encarando tais parábolas como convites à caridade
contemplativa e à sabedoria prática. Na tradição de Hugo, esta passagem é
especialmente pedagógica: mostra que o verdadeiro conhecimento da Lei conduz ao
amor, e não ao formalismo. O samaritano é o verdadeiro “sábio”, pois une saber
e agir.
Urs Von Balthasar
(Gloria II):
Ele interpreta o
gesto do samaritano como um ato de “kenosis” — uma auto-humilhação amorosa do
Verbo que se aproxima da miséria humana, indo além de qualquer mérito, é o amor
abnegado que ultrapassa todas as fronteiras e cumpre as exigências mais profundas
da lei. A caridade torna-se manifestação da glória escondida de Deus.
Adrienne von Speyr
(Comentário de Lucas):
Ela lê o gesto do
samaritano como vocação da alma contemplativa: ver, deter-se, tocar, carregar,
pagar. É a imagem de uma alma que não apenas observa o sofrimento, mas o assume
em intercessão. Uma espiritualidade encarnada. Convida os fiéis ao mistério da
misericórdia divina, incitando-os a ver Cristo no outro que sofre.
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D. Considerações
Filosóficas (São Tomás de Aquino)
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- A virtude da
caridade, como descrita por São Tomás, exige o amor não apenas afetivo, mas
efetivo, ou seja, com obras.
- O samaritano pratica
todas as partes da virtude moral da misericórdia:
- Piedade (sentir
compaixão);
- Benignidade
(procurar aliviar);
- Liberalidade (dar
do próprio).
- Há também uma
analogia entre esta parábola e o Bem Comum: o samaritano age sem esperar
reciprocidade, o que espelha a ação divina como causa primeira do bem (cf. S.
Th. I, q.6).
- O gesto do
samaritano rompe com a ética aristotélica do mérito e reciprocidade, apontando
para uma ética teologal, fundamentada na graça.
- Conecta o mandamento
de amar o próximo como a si mesmo com a lei natural, enraizada na imago Dei
(imagem de Deus) em cada pessoa.
- Argumenta que a
perfeição da lei é a caridade, que é tanto uma virtude teologal quanto o
princípio animador de toda ação moral.
- A parábola
exemplifica como a graça possibilita o cumprimento da lei, não como mera
observância externa, mas como transformação interior pelo amor.
- As ações do
samaritano incorporam o ideal tomista de sabedoria prática (prudentia) e a
unidade das virtudes.
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4. Conclusão:
Relevância Teológica Contemporânea
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A Parábola do Bom
Samaritano, conforme interpretada pela grande tradição teológica, é uma
profunda revelação da essência do Evangelho: a misericórdia que transcende
fronteiras, o amor que cumpre a lei e a graça que cura as feridas da
humanidade. A passagem desafia leitores antigos e modernos a irem além do
legalismo e do preconceito, abraçando uma caridade universal enraizada no
exemplo e na pessoa de Cristo. Para o discurso teológico contemporâneo, este
texto permanece como uma pedra de toque para discussões sobre justiça social,
ecumenismo e a natureza da Igreja como hospital de campanha para os feridos. As
reflexões de von Balthasar, von Speyr, Ratzinger, Tomás de Aquino e a tradição
patrística nos convidam a ver em cada pessoa que sofre o rosto de Cristo e a
responder com o mesmo amor abnegado que é a marca do verdadeiro discipulado,
lida à luz dos grandes teólogos da tradição, nos oferece uma visão densa e profunda
da essência do cristianismo:
- Cristo é o
samaritano que se abaixa para curar a humanidade ferida;
- A Igreja é a
estalagem, lugar de acolhimento, cuidado e recuperação;
- O mandamento do
amor é universal, e redefine o conceito de “próximo” como aquele a quem eu me
torno próximo.
Na
contemporaneidade, diante de guerras, exclusões e indiferenças, a exegese desta
passagem nos convoca a uma revolução da misericórdia, como afirmou o Papa Bento
XVI, ecoando toda a tradição teológica:
“Não é a ideologia
que salva o mundo, mas o coração que vê.”
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Fontes e Referências
- Hans Urs von
Balthasar, Gloria: Uma Estética da Revelação, vol. II – "A figura".
- Adrienne von Speyr,
The Gospel of Luke: A Meditative Commentary, Ignatius Press, 1998.
- Joseph Ratzinger
(Bento XVI), Jesus de Nazaré, vol. 1, cap. 4 – “A parábola do Bom Samaritano”.
- Santo Agostinho,
Sermones, 171,11.São Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, qq. 23-30.
- Hugo de São Vítor,
Didascalicon, VI.
- Catecismo da Igreja
Católica, §§1822-1829 (virtude da caridade), §1931 (próximo e dignidade
humana).
- Bíblia de Jerusalém,
notas de rodapé e introdução a Lucas 10.
https://www.biblegateway.com/passage/?search=Lucas+10%3A25-37&version=GNT
https://www.biblegateway.com/passage/?search=Lucas+10%3A25-37&version=RSVCE
https://www.oca.org/readings/daily/2022/11/13/8
https://enterthebible.org/passage/lucas-1025-37-o-bom-samaritano
https://www.workingpreacher.org/commentaries/revised-common-lectionary/ordinary-15-3/commentary-on-lucas-1025-37-4
https://researchonline.nd.edu.au/cgi/viewcontent.cgi?article=1079&context=phil_article
https://scholarlypublishingcollective.org/psup/theological-interpretation/article/13/1/76/198561/Hermeneutical-Insights-on-the-GospelsRatzinger-s
http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/en/messages/sick/documents/hf_ben-xvi_mes_20130102_world-day-of-the-sick-2013.html
https://www.1517.org/articles/gospel-luke-1025-37-pentecost-5-series-c-2025
https://isidore.co/aquinas/english/CALuke.htm