quarta-feira, 9 de abril de 2025

O DEUS DA DISCIPLINA E DA GRAÇA

 

 God's “Punishing” Of Descendants: Is It Unjust And Unfair? | Dave Armstrong

Certamente não era errado os israelitas quererem água em Refidim. O problema foi a atitude deles. Queriam que Deus se provasse a eles, mesmo já tendo lhes mostrado milagres incríveis no Egito e no Mar Vermelho. Ele lhes deu o que pediram, mas eles receberam mais do que esperavam!

Pode ser o caso de um passo em falso em direção ao pecado mortal. Ou o peso acumulado dos pecados veniais. Podem ser vastos períodos de aridez espiritual angustiante. Seja o que for, uma caminhada da fé às vezes pode parecer mais uma série de contratempos, uma montanha-russa de altos e baixos ou um zigue-zague.

Para todos nós que lutamos dessa maneira e de maneiras semelhantes em nossas jornadas espirituais, a história do Êxodo dos israelitas para o deserto permanece como um grande encorajamento. Pense nisto: os israelenses tinham acabado de vivenciar sua libertação milagrosa da escravidão no Egito e estavam no caminho da Terra Prometida. Deus havia aberto o mar e feito chover comida dos céus. De uma rocha, Ele jogou água para eles.

E, no entanto, depois de tudo isso, devido ao pecado, os israelenses se viram vagando no deserto por 40 anos.

Sabemos que, até certo ponto, a jornada deles é um modelo para nós — tanto no que não fazer quanto no que fazer. Isso fica evidente em 1 Coríntios 10:1-6:

Não quero, irmãos, que ignoreis que nossos antepassados ​​​​estiveram todos debaixo da nuvem e todos passaram pelo mar, e todos foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar. Todos comeram o mesmo alimento espiritual e todos beberam da mesma bebida espiritual, pois beberam de uma rocha espiritual que os acompanhava, e a rocha era Cristo. Contudo, Deus não se agradou da maioria deles, pois foram feridos no deserto. Essas coisas aconteceram como exemplos para nós, para que não cobicemos coisas mais, como elas cobiçaram.

A Quaresma é um tempo particularmente oportuno para refletir sobre a lição do Êxodo para hoje. É um chamado para seguir o próprio Cristo no deserto das nossas vidas, como nos apresenta São Lucas no seu Evangelho no capítulo 4 de 1 a 13.

Ouvimos frequentemente que existem três estágios básicos na jornada espiritual: o purgativo, o iluminativo e o unitivo. Embora ninguém tenha uma compreensão real desses estágios que são considerados simples, o número três pode ser um pouco enganoso. Na verdade, existem muitos, muitos planos de jornada espiritual — mesmo dentro da tradicional divisão tripla.

O Êxodo faz bem em nos lembrar disso. Na verdade, é no livro de Números no capítulo 33, que todos os vários estágios da peregrinação no deserto ao longo de 40 anos são meticulosamente registrados.

Um Padre da Igreja, Orígenes, deu-se ao trabalho de contá-los todos para revelar que há um total de 42. Em uma mistura espetacular de literalismo servil e a mais desvairada das alegorias, Orígenes interpretou-os como representando as 42 iniciativas do crescimento espiritual, proporcionando uma exposição do significado de cada um, com base em seu nome de lugar.

Não é preciso abraçar a hiperalegoria de Orígenes para extrair aqui a lição básica de que existem várias etapas na jornada espiritual — tudo bem se parecer que nosso caminho é menos uma linha reta do que um enorme desvio, ou se parecer que estamos nos desviando um pouco do curso. Sim, há algo errado com você: é a maldição da Queda e a tendência persistente ao pecado que dela resulta. Mas é um problema previsto e compreendido pelas Escrituras, que traçaram um caminho para o crescimento espiritual mesmo para aqueles que se desviaram.

Está além do nosso escopo aqui delinear esses caminhos para a santidade, mas alguns pontos de partida incluem a homilia de Orígenes sobre Números, que parece bastante sólida em sua teologia moral, apesar de usar de alegorias para apresentá-la.

E o próprio Livro de Números oferece um relato bíblico da rebelião contínua, do perdão e dos encontros com Deus no deserto.

E, claro, a própria Quaresma tem sua própria forma distinta de apresentar estágios: as Estações da Cruz, que são tradicionalmente marcadas com orações e reflexões às sextas-feiras.

Entretanto, a maior lição que podemos aprender dos eventos no deserto, é que Deus salvou Seu povo com água de uma rocha e por meio de um intercessor com mãos estendidas (com um homem de cada lado dele, assim como Arão e Hur estavam de cada lado dos braços estendidos de Moisés): lições objetivas para mostrar ao Seu povo a Água Viva de Cristo, a Rocha, cujo corpo foi quebrado por nós e cujos braços estendidos na cruz demonstraram o maior amor que alguém poderia conhecer.

 

terça-feira, 22 de outubro de 2024

A Alma do Papa São João Paulo II


Para entender João Paulo II verdadeiramente, é preciso começar reconhecendo que, antes de qualquer coisa, ele foi um discípulo cristão profundamente convertido. Logo após sua morte, em 2 de abril de 2005, Henry Kissinger declarou à NBC que seria difícil imaginar alguém com maior impacto no século XX do que o papa polonês que, na noite de sua eleição, em 1978, se descreveu como "um homem vindo de uma terra distante". Isso é notável porque Kissinger, uma figura influente da política mundial, não compartilhava das crenças religiosas ou filosóficas de Karol Wojtyła. Passados mais de 15 anos, o comentário de Kissinger ainda merece reflexão. Se João Paulo II foi, de fato, a figura mais emblemática do século XX, o que fez dele essa personalidade marcante? E como sua virtude heroica, reconhecida pela Igreja quando ele foi canonizado em 2014, se relaciona com seu impacto?

Em uma conversa em 1996, João Paulo II comentou sobre as tentativas dos biógrafos de entender sua vida: "Eles tentam me entender de fora. Mas eu só posso ser compreendido de dentro." Ele sabia que era uma figura histórica, mas insistia que sua história só poderia ser compreendida a partir de sua alma. Revisitando essa alma, podemos compreender melhor sua vida e suas realizações.

Karol Wojtyła, que se tornaria João Paulo II, tinha uma alma profundamente polonesa, moldada não só pela cultura do país, mas pela experiência histórica da Polônia. Nascido em 1920, ele foi da primeira geração de poloneses a crescer num Estado independente após mais de um século de ocupação estrangeira. Durante 123 anos em que a Polônia não existia como nação, sua cultura e fé católica preservaram a identidade nacional. Isso deixou uma marca profunda em Wojtyła, que acreditava que a cultura, mais do que a política ou a economia, era o verdadeiro motor da história. E no coração de qualquer cultura está o culto, ou seja, aquilo que as pessoas veneram. Quando foi eleito papa, em 1978, a Igreja Católica no Ocidente parecia estar em declínio. Mas João Paulo II, com sua experiência polonesa, acreditava que o cristianismo ainda poderia ser uma força poderosa para moldar o futuro.

A espiritualidade de João Paulo II também foi profundamente influenciada pela tradição carmelita, especialmente pelos escritos de São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, que ensinaram que a verdadeira realização humana está no dom de si, em obediência a Deus. Para João Paulo II, a Cruz de Cristo era o ponto central da história humana. A partir disso, ele desenvolveu sua ética, acreditando que, assim como recebemos nossas vidas como um presente, devemos oferecer nossas vidas aos outros.

Outro aspecto fundamental da sua espiritualidade era sua devoção à Virgem Maria. Desde cedo, ele se colocou sob a proteção de Maria, vendo nela não apenas uma figura tradicional da fé polonesa, mas o exemplo supremo de discipulado cristão. Sua obediência à vontade de Deus, especialmente nas horas mais difíceis, inspirou a vida e o pontificado de João Paulo II.


Além disso, Wojtyła possuía uma alma dramática, formada por sua paixão pelo teatro. Ele via a vida como um drama, uma jornada entre o que somos e o que devemos nos tornar. Essa visão dramática, aliada à sua experiência como ator e dramaturgo, o ajudou a se conectar de forma autêntica com as pessoas, especialmente com os jovens, desafiando-os a buscar grandeza moral e espiritual, mesmo em um mundo marcado pelo pecado e pelo mal.

Embora João Paulo II tivesse uma profunda vocação sacerdotal, ele também possuía o que poderíamos chamar de uma "alma laica". Antes de considerar o sacerdócio, ele pretendia viver como leigo e acreditava que a santidade não era uma vocação reservada ao clero, mas um chamado universal para todos os cristãos. Para ele, a fé católica deveria iluminar todos os aspectos da vida, não apenas uma parte dela.

Por fim, sua vida foi marcada pela busca de uma ideia coerente da dignidade humana, especialmente depois de experimentar as atrocidades da Segunda Guerra Mundial e da ocupação comunista em sua terra natal. Ele acreditava que a Igreja tinha a missão de resgatar a ideia de pessoa humana em um século marcado pela desumanização. A seu ver, o século XX havia deixado cicatrizes profundas, e o papel da Igreja era apontar um caminho de esperança e redenção para a humanidade.

A experiência de Karol Wojtyła durante a Segunda Guerra Mundial foi decisiva para moldá-lo. A brutalidade e o sofrimento constantes na Polônia sob o regime nazista fizeram com que ele se tornasse um “diamante”, alguém capaz de enfrentar as dificuldades e, ao mesmo tempo, refletir a luz em tempos sombrios. Essa força interior o ajudou, mais tarde, a desafiar o regime comunista e a inspirar movimentos de resistência pacífica.

Quando João Paulo II foi eleito papa, a divisão entre o Oriente e o Ocidente, simbolizada pelo Muro de Berlim, parecia permanente. Muitos líderes mundiais acreditavam que o melhor que se poderia fazer era amenizar as tensões. Mas João Paulo II, com sua visão firme, recusou-se a aceitar essa divisão como inevitável e, com seu papel decisivo no colapso do comunismo, mostrou ao mundo que uma mudança histórica era possível.

Dentro da Igreja, João Paulo II ajudou a restaurar o senso de missão evangelizadora. Ele acreditava que a Igreja não podia se limitar à manutenção de suas instituições, mas deveria se transformar em um empreendimento missionário, como era nos seus primórdios. Para ele, o catolicismo não era apenas uma tradição a ser preservada, mas um chamado a todos para uma nova evangelização, para levar a mensagem de Cristo a todas as nações.

João Paulo II foi um papa que trouxe ao seu pontificado um conjunto excepcional de talentos e dons pessoais, que foram refinados por sua fé inabalável e décadas de experiência pastoral. Sob sua liderança, a Igreja se tornou um ator importante no cenário mundial e na renovação espiritual do final do século XX e início do XXI. Mas para entender João Paulo II de verdade, é preciso começar pelo reconhecimento de sua alma profundamente enraizada na fé cristã e na visão de que o mundo só pode ser transformado através da luz de Cristo.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Não Há Liberdade Sem Verdade - São João Paulo II estava certo!



“Não pode haver Estado de direito… a menos que os cidadãos e especialmente os líderes estejam convencidos de que não há liberdade sem verdade.” 

Papa São João Paulo II

O homem é chamado à liberdade e à verdade. A verdade é dada ao homem como uma fundação inabalável. “Só então ele será capaz de se realizar completamente e até mesmo superar a si mesmo.” Não há liberdade sem verdade. Ambos são fenômenos integrados, fundidos em um.

O esplendor da verdade resplandece em todas as obras do Criador e, de modo especial, no homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1, 26). Segundo Karol Wojtyła, “A verdade ilumina a inteligência do homem e molda sua liberdade, levando-o a conhecer e amar o Senhor”. 

Somente a liberdade que advém da verdade gera o bem. Caso contrário, a liberdade pode ser uma força para o mal, pois degenera em licença. Estas são  respostas a duas perguntas fundamentais: O que é liberdade? A liberdade pode existir sem a verdade?

De acordo com Aristóteles, “a liberdade é uma propriedade da vontade que é realizada através da verdade. A liberdade é dada ao homem como uma tarefa a ser cumprida.” A autor realização da liberdade humana na verdade começa na “experiência do sujeito moral.” São Tomás de Aquino abraçou o sistema aristotélico de virtudes: prudência, justiça, fortaleza e temperança. “O bem que deve ser realizado pela liberdade humana é precisamente o bem das virtudes.” Mas São Tomás deu um passo adiante e adicionou à moralidade de Aristóteles “luz que é oferecida pela Sagrada Escritura. A maior luz vem do mandamento de amar a Deus e ao próximo. Neste mandamento, a liberdade humana encontra sua realização completa.

O enraizamento da liberdade na verdade também tem sido um tema central nos escritos de São João Paulo II, enquanto Papa. No coração de seus documentos magisteriais está o tema da liberdade humana. O Papa a definiu desta forma:

“A liberdade não consiste em fazer o que gostamos, mas em ter o direito de fazer o que devemos.” 

O homem é chamado à liberdade”, nos disse. Ele quis dizer liberdade baseada em valores e atitudes éticas. A liberdade também se apoia em quatro fundamentos principais: verdade, solidariedade, sacrifício e amor.

Verdade : “As forças criativas livres do homem só se desenvolverão ao máximo se forem baseadas na verdade, que é dada a todo homem como uma fundação inabalável. Só então ele será capaz de se realizar completamente e até mesmo superar a si mesmo. Não há liberdade sem verdade.”

Solidário : “A liberdade experimentada na solidariedade se expressa na ação pela justiça nos campos político e social, e direciona o olhar para a liberdade dos outros. Não há liberdade sem solidariedade.”

Sacrifício: “A liberdade é um valor extremamente precioso, pelo qual um alto preço deve ser pago. Ela requer generosidade e prontidão para o sacrifício; requer vigilância e coragem diante de forças internas e externas que a ameaçam. … Não há liberdade sem sacrifício.”

Amor. “Deixe o portão aberto abrindo seus corações! Não há liberdade sem amor.”

Karol Wojtyla sabia o preço real da liberdade. Ele viveu sob a ameaça de morte pelos nazistas e viu sua amada Polônia lutar sob os comunistas. Portanto, ele foi um dos mais poderosos embaixadores da liberdade e da verdade em seu próprio país e no mundo inteiro. Em 1996, o papa polonês apelou para “aquelas nações que ainda têm negado o direito à autodeterminação, aquelas muitas nações, e há de fato muitas delas nas quais as liberdades fundamentais do indivíduo, fé e consciência, assim como a liberdade política, não são garantidas”. Assim, a falta de verdade se traduziu em falta de liberdade. 

Em sua primeira encíclica Redemptor Hominis, São João Paulo II citou as palavras de Cristo sobre a força libertadora da verdade. Então ele acrescentou:

Estas palavras contêm tanto uma exigência fundamental como uma advertência: a exigência de uma relação honesta com a verdade como condição para a liberdade autêntica, e a advertência para evitar todo o tipo de liberdade ilusória, toda a liberdade superficial unilateral, toda a liberdade que não consiga entrar na verdade total sobre o homem e o mundo.” 

De fato, dado o pluralismo contemporâneo, o agnosticismo e o relativismo cético, o aviso de São João Paulo II sobre a “crise da liberdade e da verdade” soa como uma profecia. Ele nos alertou que qualquer afastamento da verdade resulta na liberdade perdendo suas amarras e expondo o homem à violência da paixão e à manipulação. 

A crise contemporânea da liberdade é, em sua raiz, uma crise da verdade. Na Veritatis Splendor, na Evangelium Vitae e em outros lugares de seus ensinamentos oficiais, São João Paulo II afirmou que, negar o elo entre liberdade e verdade poderia levar ao totalitarismo. E em Memória e Identidade ele explicou:

O abuso da liberdade provoca uma reação que toma a forma de um sistema totalitário ou outro. Esta é a corrupção da liberdade que experimentamos no século XX e estamos experimentando algumas dessas formas hoje.

Seguindo Aristóteles, São Tomás de Aquino e São João Paulo II, repetimos que “não há liberdade sem verdade”. É claro que a ligação entre a liberdade humana e a verdade é de suma importância. Portanto, entender os pensamentos dos nossos filósofos e a teologia da verdade e da liberdade de São João Paulo II dentro dos contextos individuais, sociais e políticos nos ajuda a responder adequadamente aos desafios dos tempos atuais.


terça-feira, 15 de outubro de 2024

São João Paulo II é verdadeiramente o “Papa da Misericórdia”.

São João Paulo II, nascido Karol Wojtyła em 18 de maio de 1920, foi o papa que mais tempo serviu no século XX. Nascido em Wadowice, uma pequena cidade não muito longe de Cracóvia, o papa viajado é bem conhecido por seus ensinamentos sobre a Divina Misericórdia desde sua eleição para o papado em 1978. Ao longo de seu pontificado, o papa constantemente se centrou nas misericórdias de Deus.

São João Paulo II concentrou muitos de seus esforços em trazer Cristo para a cultura, por meio da Divina Misericórdia de Deus. O Domingo da Divina Misericórdia, que cai no segundo domingo da Páscoa, nos lembra que a misericórdia é a resposta final para os problemas do mundo de hoje. Aliás, João Paulo II morreu na vigília da festa cinco anos depois de ter oficialmente concedido a festa à Igreja Universal, e foi beatificado (2011) e canonizado (2014) nos Domingos da Divina Misericórdia.

No primeiro domingo do Advento, 30 de novembro de 1980, o Papa João Paulo II publicou sua segunda carta encíclica “Dives in Misericordia” (Rico em Misericórdia), na qual descreve a misericórdia de Deus como a presença de um amor que é maior do que qualquer mal, maior do que qualquer pecado e maior do que a morte. Nesta encíclica, ele convoca a Igreja a se dedicar a implorar pela misericórdia de Deus para o mundo inteiro.

A publicação desta segunda encíclica foi provavelmente o acontecimento mais importante na vida do Santo Padre e na sua relação com Santa Faustina e com a mensagem da Divina Misericórdia. 

Com base em reflexões da Dives in Misericordia (DM), vemos vários fundamentos teológicos essenciais para ter uma verdadeira compreensão e expressão da misericórdia de Deus.

Em primeiro lugar, João Paulo aponta para a revelação da misericórdia no mistério pascal — a paixão, morte, ressurreição e ascensão de Jesus. Para que a “justiça absoluta” aconteça, ele diz, “Cristo sofre a paixão e a cruz por causa dos pecados da humanidade. Isso constitui até mesmo uma ‘superabundância’ de justiça, pois os pecados do homem são ‘compensados’ pelo sacrifício do Homem-Deus” (DM, 7). A verdadeira misericórdia é revelada porque “Ele nos salvou, não por causa de coisas justas que tivéssemos feito, mas por causa de sua misericórdia” (Tit 3, 5). 

Um segundo ponto importante sobre a misericórdia de Deus é encontrado na parábola do Filho Pródigo. Ao analisar esta parábola, São João Paulo II destacou que no ato do perdão, “aquele que perdoa e aquele que é perdoado encontram-se num ponto essencial, a saber, a dignidade ou valor essencial da pessoa” (DM, 14). O filho, que esbanjou seus bens, perdeu toda a dignidade. Ele não tinha nada para comer. Ele ansiava pelo que os servos de seu pai tinham, e resolveu retornar ao pai, que por sua vez restaura a dignidade de seu filho:

Mas o pai disse aos seus servos: 'Ide depressa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos, pois, este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi reencontrado!' E começaram a festejar.” (Lc 15,22-24).


A misericórdia restaura a dignidade e valoriza todos os homens pelo que eles são, à imagem de Deus, não meramente pelo que eles merecem. Para esse fim, vale a pena citar o santo Papa:

“A misericórdia em si mesma, como uma perfeição do Deus infinito, também é infinita. Também infinita, portanto, e inesgotável é a prontidão do Pai para receber os filhos pródigos que retornam à Sua casa. Infinitas são a prontidão e o poder do perdão que fluem continuamente do valor maravilhoso do sacrifício do Filho. Nenhum pecado humano pode prevalecer sobre esse poder ou mesmo limitá-lo. Da parte do homem, somente a falta de boa vontade pode limitá-lo, a falta de prontidão para se converter e se arrepender, em outras palavras, a persistência na obstinação, opondo-se à graça e à verdade, especialmente diante do testemunho da cruz e da ressurreição de Cristo.”


São João Paulo II, em seu ministério, exemplificou a misericórdia. Ele abraçou todos os que estavam sofrendo por meio de suas muitas visitas papais e se opôs à matança inocente da humanidade, mais evidente no aborto e na eutanásia. O mais surpreendente é que, depois de ser baleado várias vezes, ele visitou seu suposto assassino na prisão, perdoou-o e implorou aos tribunais que perdoassem o homem da prisão perpétua.

Aonde isso nos leva? Carregamos as cruzes pelo bem dos outros? “O amor misericordioso é supremamente indispensável entre aqueles que estão mais próximos uns dos outros: entre maridos e esposas, entre pais e filhos, entre amigos”, escreveu o papa. “E é indispensável na educação e no trabalho pastoral” (DM, 14). Na cruz de Cristo, recebemos um exemplo da misericórdia de Deus e somos desafiados a estender Sua Divina Misericórdia aos outros.

E nós? Que necessidade temos, como filhos de Deus, da misericórdia de Deus? Em que áreas de nossas vidas e de nossa profissão lutamos para encontrar misericórdia e perdão de Deus? É verdade que, como missionários da misericórdia, somos chamados a espelhar a misericórdia de Deus para os irmãos com quem interagimos e que não 'merecem' misericórdia! (fundamento básico para derramarmos misericórdia é não a merecer, caso contrário, seria aplicação da justiça). Mas como podemos praticar a misericórdia sem primeiro buscar recebê-la, sem reconhecer que somos absolutamente dependentes da Sua misericórdia, por estarmos mergulhados no pecado? Precisamos implorar muito pelo Seu perdão e Sua misericórdia, sem medo, sem receios, sem desculpas, de plena consciência de quem somos e de on de viemos, e pedir incessantemente, já que nosso próprio Senhor nos lembrou que "aquele a quem pouco foi perdoado mostra pouco amor." (Lc 7, 47)?

Corajosos, peça ao Senhor sua Divina Misericórdia, já que Ele nunca se cansa de oferecê-la a nós.


domingo, 13 de outubro de 2024

Corações em chamas: O que podemos aprender com Santa Margarida Maria Alacoque

 

Alguns santos são fáceis de amar. Por gerações fomos atraídos pela espiritualidade humilde e pela ´pobreza de São Francisco de Assis, por exemplo, ou pelo zelo poderoso de Santa Catarina de Siena .

Outras são desafiadoras. Seu sabor particular de santidade pode ser difícil de compreender nos tempos modernos. Santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690) é uma dessas santas.

Quando você lê sua autobiografia, logo percebe que a auto aversão (extrema), era um dos seus temas principais. Honestamente, é difícil de ler. Ao contrário de outros santos que escreveram sobre sua humilhação, ela gasta mais folhas em sua maldade e consequente necessidade de punição, do que na bondade de Deus. 

E ainda assim, Deus a escolheu para ser a embaixadora de seu Sagrado Coração. Toda a sua vida se torna uma poderosa história da misericórdia de Deus quando você se lembra disso.

Santa Margarida Maria, cujo dia de festa é 17 de outubro, teve um começo de vida difícil. Seu pai e sua irmã mais nova morreram quando ela tinha apenas oito anos. Ela foi imediatamente mandada para uma escola de convento, onde adoeceu quase imediatamente. Ela ficou de cama por dois anos antes de ser mandada de volta para sua mãe.

Sua mãe havia se mudado para a casa da família paterna de Margaret Mary. Membros daquela família abusavam horrivelmente de Margarida Maria e de sua mãe. Ela descreveu a situação delas como um "estado de cativeiro", onde elas tinham que pedir permissão para fazer até as tarefas mais simples da casa. Eles frequentemente a impediam de ir à missa. Quando ela chorava por isso, eles começaram a espalhar boatos pela casa de que ela estava tentando se encontrar com um rapaz. Eles também a espancavam e a faziam trabalhar como empregada.

Durante esse tempo, Margarida Maria desenvolveu uma enorme capacidade de oração mental, apesar de não ter ninguém para guiá-la. Ela se ajoelhava em um canto do jardim da família por dias, derramando seu coração para Jesus por meio de Maria. Ela eventualmente voltava furtivamente para a casa para trabalhar entre os servos. Mais tarde, começou a infligir penitências dolorosas a si mesma e a repetir suas confissões porque tinha certeza de que seus pecados eram terríveis demais para serem perdoados. 

Jovens homens começaram a se aproximar de sua família através dela. Vários fizeram propostas de casamento vantajosas. Sua mãe frequentemente lembrava Margarida Maria de que ela só poderia deixar a família abusiva, se ela montasse sua própria casa. Margarida Maria começou a pensar em ignorar seu chamado para a vida religiosa. Então Jesus apareceu açoitado diante dela e disse que sua vaidade o havia colocado naquele estado. Ela começou a se machucar ainda mais.

Finalmente, apesar da raiva da família, ela deixou claro que tinha que entrar para a vida religiosa. A família a pressionou para se juntar à prima com as Ursulinas, mas ela teve uma experiência mística com São Francisco de Sales e sabia que deveria ser filha dele. Ela entrou na Ordem das Freiras da Visitação em Paray quando tinha vinte e três anos. 

Pouco depois de professar, Margarida Maria recebeu uma tremenda graça. Ela estava rezando diante do Santíssimo Sacramento quando foi preenchida pela presença de Jesus, a ponto de esquecer onde estava. 

Jesus a fez deitar-se contra seu peito como São João na Última Ceia. Ele contou a ela os segredos de seu coração.

Meu Divino Coração”, ele disse, e ela nos revela em sua autobiografia, “está tão inflamado de amor pelos homens, e por você em particular, que, não podendo mais conter em si as chamas de Sua Caridade ardente, deve espalhá-las por teus meios e manifestar-se a eles (a humanidade) para enriquecê-los com os preciosos tesouros que eu descubro para você, e que contêm graças de santificação e salvação necessárias para retirá-los do abismo da perdição.”

O coração de Jesus está tão em chamas com amor pela humanidade que ele tem que se espalhar. Ele queria que Margarida Maria espalhasse esse amor, pois ele contém as graças necessárias para a salvação.

Então, ele pediu a ela o coração dela, que ela implorou que Ele pegasse. Ele o colocou dentro do seu. Ela descreveu isso como observar um pequeno átomo consumido por uma fornalha. Quando Ele puxou o coração dela para fora, parecia uma chama. Ele o colocou de volta nela. Ele disse a ela que seu coração em chamas a consumiria até o fim de sua vida.

Logo Margarida Maria foi acusada de estar possuída. As irmãs jogaram grandes quantidades de Água Benta sobre ela para curá-la. Ela também foi enviada para falar com muitos teólogos, que duvidavam abertamente dela.

Finalmente, ela foi se confessar com St. Claude de Colombière. Pela primeira vez em sua vida, alguém acreditou nela imediatamente. Ele lhe ensinou o discernimento dos espíritos e a aconselhou a agradecer a Deus pelas graças que Ele lhe dera constantemente. Ele permitiu que ela orasse do jeito que Deus lhe havia ensinado e ordenou que parasse de se punir por lutar com a oração vocal.

Pouco depois disso, ela foi receber a comunhão de Claude. Jesus lhe deu uma visão de ambos os corações sendo consumidos pelo dEle. E lhe disse que eles deveriam trabalhar juntos para espalhar a devoção ao seu Sagrado Coração. 

Claude eventualmente escreveu um livro sobre suas visões. Isso trouxe uma nova dedicação ao Sagrado Coração de Jesus.

Após a morte prematura do Padre Claude, seus escritos sobre as revelações foram encontrados e lidos pela superiora e pelas irmãs da Irmã Margaret Mary, que então aceitaram suas revelações como genuínas.

Hoje, o Sagrado Coração de Jesus é reverenciado por católicos ao redor do mundo.

Deixamos muita coisa de fora dessa história, principalmente páginas de Margarida Maria descrevendo sua vileza e as coisas horríveis que ela fez com seu corpo antes de ser controlada. Realmente, tivemos dificuldades. Não conseguimos conciliar a beleza do Sagrado Coração com sua história trágica e perturbadora. Finalmente, ocorreu-nos que talvez fosse exatamente isso que Deus queria. 

Quando olhamos para o Sagrado Coração, vemos a misericórdia e o amor infinitos de Deus. Ele o usa para nos dizer que nenhum sacrifício que fazemos pode chegar perto do dele, e ainda assim, está nos dando seu coração. O Sagrado Coração é uma escola de amor e misericórdia.

Embora a devoção ao Sagrado Coração já existisse no século XII, Jesus esperou por uma menina abusada em particular, na França, para espalhar a devoção.

Jesus Cristo é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem na unidade de uma pessoa divina. Quando adoramos o Sagrado Coração, adoramos o Verbo Eterno, que compartilha o amor divino da Trindade desde toda a eternidade; adoramos a humanidade de Jesus Cristo, unida substancialmente ao Verbo Eterno e expressando amor em Sua vontade humana, sentidos e sentimentos. Em linguagem moderna, poderíamos dizer que Ele é alguém com quem podemos nos relacionar.

Ele nos mostra que ninguém está além do Seu amor, não importa quão desolado ou abusado seja ou esteja. Qualquer um pode ser seu mensageiro. Só temos que colocar nossas cabeças em seu coração e deixá-lo nos contar sobre seu amor.

Qual é sua experiência com devoções ao Sagrado Coração? Conte-nos na seção de comentários no final da página.